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O URSINHO DE PELUCHE

Uma história de amor

Autor
JORGE FRANCISCO MARTINS DE FREITAS

Caracóis dourados desciam pelo rosto de Amélia, emoldurando flamejantes olhos azuis.

As faces, doces e delicadas como as pétalas de um rosa acabada de colher numa manhã de primavera, eram colmatadas por um meigo sorriso, vincando pequenas covinhas na cara.

Todos os que tinham a felicidade de contemplar os seus delicados ombros nus, qual âmbar ali depositado por uma entidade divina, mal reparavam no singelo vestido, por ela usado no dia-a-dia como se de uma farda se tratasse, nem nos calejados pés enfiados numas velhas alpercatas que já haviam servido aos avós.

Detinham-se mais nos airosos passos com que se movimentava, semelhantes aos de uma bailarina rodopiando num ambiente celestial.

Quando falava com alguém, baixava respeitosamente o olhar, articulando pequenas frases de uma singeleza que pensávamos não poder existir numa pessoa que vivera toda a vida numa aldeia e que, com muita dificuldade, havia feito os estudos primários enquanto cuidava, como irmã mais velha, de todas as tarefas domésticas e do cultivo da pequena horta que envolvia a modesta casa onde todos sobreviviam.

O pai, mais dedicado à bebida que ao trabalho, havia morrido uns anos atrás, deixando desamparada a mãe, uma mulher de rara beleza, que teve de arranjar trabalho como criada de uns senhores da vila, abandonando os filhos um pouco à sua sorte.

Nas noites mais frias de inverno, Amélia, embrulhada numa manta que já vira melhores dias, sonhava com uma vida mais desafogada. Quanto gostaria de ter tido – como as colegas de escola – um ursinho para abraçar, mas apenas lhe restava uma boneca de trapos onde desenhara, com ternura, uns olhos e uma boca.

Entretanto, a mãe acabaria por se casar com o patrão, quando este enviuvou, passando Amélia e os quatro irmãos a residir na vila, na companhia dos seis filhos do padrasto.

Inicialmente, a sua vida melhorou um pouco, mas eram muitas bocas para alimentar e o rendimento que usufruía o novo marido da mãe não chegava para o sustento de todos.

Quando fez 17 anos, uma das suas amigas, conhecedora da tristeza que ela tinha de nunca ter possuído um peluche, apresenta-lhe um primo, dizendo-lhe, à laia de brincadeira, que aquele poderia ser o ursinho que não tivera em criança.

Dez anos mais velho, este pretendente havia passado uma infância difícil, mas conseguira, mercê de persistentes estudos, alcançar um emprego satisfatoriamente remunerado.

Amélia não demonstrou por ele uma especial afeição, mas, com a vida desditosa que levava, este casamento poderia atenuar-lhe o sofrimento.

Volvidos três meses, estavam casados, tendo ido viver para uma casa nova, perto da vila.

Nos primeiros tempos, o relacionamento entre ambos correu bem, embora o marido demonstrasse algum desagrado pelo sorriso natural que o seu rosto emanava quando falava com outras pessoas.

Aos poucos e poucos, o ciúme atinge-o de tal modo que procura manter Amélia em casa, evitando levá-la à rua. O urso de peluche que a amiga lhe apresentara não correspondia àquilo que ela sonhara em criança, criando-lhe alguma instabilidade emocional.

Dois anos decorrem. Amélia sente-se prisioneira na sua própria casa, embora rodeada de conforto.

A poente da sua moradia, são construídas novas residências, rapidamente habitadas por jovens casais. Amélia torna-se amiga de Rosa, a vizinha do lado. Conversam longamente e travam uma amizade profunda, que a ajuda a ultrapassar o isolamento a que fora vetada.

Um dia, ao entrar na casa da amiga, depara com um ursinho de peluche recostado num sofá. Olha-o com carinho, recordando o desejo de criança de ter um. Considera encantador o seu lustroso pelo encimado por uns olhos de vidro que parecem fitá-la com ternura.

Nos dias seguintes, desloca-se a casa da vizinha mais para ver o ursinho do que para manter uma conversação. Acaricia o sedoso pelo do peluche e encosta-o ao peito. Este permanece quedo, mas o seu olhar parece iluminar-se sempre que Amélia o acarinha.

Pouco a pouco, já não consegue destrinçar se começara a amar um simples boneco de criança ou se este era um verdadeiro ser humano por quem nutria um desejo que em muito ultrapassava a simples contemplação.

Amélia, ao longo da sua ainda curta vida, nunca roubara nada, mas um desejo inexplicável impele-a a pegar no ursinho e levá-lo para casa, escondendo-o num armário. Este parece ter ficado muito feliz, iluminando ainda mais o seu vítreo olhar.

Todas as noites, antes de se deitar, abraça longamente o peluche, sentindo-se envolvida por uns ternos braços que a acariciam.

Um sentimento de culpa apodera-se dela. «Estarei a trair o meu marido? Não, trata-se apenas de um simples peluche» – pensa Amélia.

Aos poucos, começa a passar por uma enorme instabilidade emocional. Já não consegue olhar o marido de frente pois os seus pensamentos estão naquele armário onde esconde, da vista de todos, o seu verdadeiro amor.

Até que, um dia, assume uma medida drástica: teria de afastar o boneco de peluche, para tentar salvar o seu casamento.

Pega no ursinho, sobe as escadas até ao sótão, um lugar solitário onde a luz apenas entra por uma pequena janela e coloca-o dentro de uma caixa de papelão, entre revistas e uns trapos velhos.

O ursinho fica muito quieto, aguardando que Amélia o vá buscar mais tarde.

Através de uma pequena ranhura da caixa, apercebe-se que o dia já havia declinado. Uma aragem fresca entra por uma das telhas quebradas. Sente frio, uma sensação que nunca experimentara. A sua Amélia não aparece para o aquecer. Talvez venha mais tarde.

Os dias, porém, vão passando inalteráveis, sem que ninguém o venha tirar daquele local.

Numa noite gélida, tudo à sua volta treme. Um terramoto? Escuta gritos que lhe parecem longínquos, mas depois tudo volta à normalidade. Deixa de ter noção da passagem do tempo. Ouve um bebé chorar e, mais tarde, uma criança correndo pelo sótão. Depois, um pesado silêncio que lhe parece uma eternidade. Um dia, apercebe-se que ocorre uma grande festa e consegue ouvir distintivamente alguém a dizer «Viva o novo milénio!». Volta a haver silêncio prolongado e o choro de uma criança regressa.

Há quantos anos estará ali abandonado? O que terá sido feito de Amélia?

De repente, sente uma brisa perfumada. Alguém acabara de abrir a tampa da caixa, deixando a luz entrar no seu interior. Vê uma criança que olha para ele com curiosidade e o agarra com as suas pequenitas mãos, arrestando-o pela escada que conduz ao piso térreo.

– Vovó! Olha o que encontrei no sótão!

O ursinho olha para a avó da criança e, apesar desta apresentar o rosto marcado por algumas rugas, as encantadoras covinhas na face geradas pelo seu harmonioso sorriso não lhe deixam qualquer dúvida sobre a sua identidade.

– O meu ursinho! – Exclama Amélia, enquanto agarra o peluche junto ao peito e o beija.

Durante alguns dias, dá-lhe muita atenção, mas depois olha melhor para ele e apercebe-se de quão velhinho está: o pelo já não tem a mesma aparência de outrora, apresentando-se grisalho e pelado em alguns locais.

Considerando-o inútil, deixa de fazer-lhe festas. Primeiro pensa em deitá-lo fora, depois resolve dar-lhe uma nova utilidade: seria ideal para alimentar a lareira.

Pega uma última vez no ursinho. Ele pensa que irá ser novamente acarinhado. Mas não, está-lhe destinada uma última utilidade: aquecer a sua dona!

Ao amanhecer, a lareira apaga-se. Do ursinho apenas restam os dois olhinhos de vidro que, aparentemente, parecem continuar a fitar Amélia ternamente.


© Jorge Francisco Martins de Freitas, 16-12-2020.
Proibida a reprodução sem autorização prévia do autor.

ENTRE PARAGENS

Esta narrativa inédita de Jorge Francisco Martins de Freitas faz parte de um conjunto de contos intitulado ENTRE PARAGENS, do mesmo autor, que vem sendo disponibilizado gratuitamente no Magazine cultural sem fins lucrativos O Leme.

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