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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA

Romance Histórico
Portugal, 1845-1913


autor
Jorge Francisco Martins de Freitas

Episódio 1

A 17 de fevereiro de 1845, o sol está prestes a pôr-se sobre o oceano Atlântico, projetando no sudoeste da cidade de Lisboa coloridas tonalidades avermelhadas.

A silhueta do Palácio de Belém, edificado em 1559 por ordem de D. Manuel de Portugal, filho do 1.º Conde de Vimioso, sobressai entre todos os edifícios ribeirinhos, tendo a seus pés majestosos jardins geometricamente esculpidos que se estendem até à margem norte do rio Tejo.


Palácio de Belém, em meados do século XIX

No século XVIII, D. João V havia comprado este palácio ao conde de Aveiras, alterando substancialmente a sua configuração, incluindo nele uma escola de equitação cujas cavalariças acolheriam, décadas mais tarde, as instalações iniciais do Museu Nacional dos Coches.

Há já algum tempo que este edifício alberga a família real, em virtude do Palácio das Necessidades, uma das residências favoritas de D. Maria II, se encontrar em obras.

Assim que os últimos raios de sol desaparecem completamente na linha do horizonte, a rainha entra, pela sexta vez, em trabalhos de parto.

O médico real, coadjuvado por uma parteira, recebe, no quarto da rainha, água quente e impecáveis toalhas de linho, trazidas, apressadamente, por um elevado número de serviçais, um raro privilégio numa época ainda pautada por uma significativa falta de higiene.

Nas gélidas instalações dos serviçais, Ana Francisca, uma formosa criada que, desde tenra idade, presta serviço para a família real, encontra-se, igualmente, em trabalhos de parto.

Questionada sobre quem é o pai da criança, nunca responde a esta questão, o que dá origem a mexericos que apontam como eventual progenitor um dos muitos nobres que frequentam a corte.

A situação desta serviçal contrasta totalmente com a atenção que é prestada à rainha. As colegas que poderiam auxiliá-la encontram-se longe, empenhadas em atender as necessidades da soberana. Nestas condições, ninguém irá chamar uma parteira que possa acudir-lhe.

No palácio, a noite vai inexoravelmente avançando, alheia ao estoico sofrimento de ambas as parturientes, sobretudo de Ana Francisca, remetida a um aterrador isolamento.

Os médicos que vêm assistindo aos sucessivos partos da rainha várias vezes a aconselham a não ter mais filhos, dadas as dificuldades por que esta sempre passa na altura de dar à luz, sensibilizando-a para o risco sempre latente de poder perder a vida. Todavia, a monarca, consciente do papel que lhe cabe de deixar descendência que possa assegurar a continuação da sua dinastia, sempre declara:

— Se morrer, morro no meu posto!

Ana Francisca continua a lutar sozinha para ter a criança. Trouxera, para o pé de si, uma tina com água, não tendo tido tempo de a aquecer, o que dificulta ainda mais a sua solitária tarefa naquela fria noite de inverno.

Momentos antes de soarem as dez horas e quarenta e cinco minutos nos vários relógios espalhados pelo palácio, D. Maria II dá à luz uma menina.

Minutos mais tarde, nasce a criança da serviçal, também ela do sexo feminino. Apesar das dificuldades, o parto é realizado com êxito, porque a nascitura demonstra uma enorme capacidade de sobrevivência, colaborando instintivamente com a mãe na sua vinda ao mundo.

Em breve, girandolas, repiques de sinos e disparos de artilharia proclamam a toda a cidade o nascimento de mais uma princesa.

À descendente de D. Maria II é atribuído o pomposo nome de Antónia Maria Fernanda Micaela Gabriela Rafaela de Assis Gonzaga Silvéria Júlia Augusta de Bragança e Bourbon Saxe-Coburgo-Gota…

… e à filha da serviçal simplesmente Maria Isabel.

A rainha, na sua qualidade de chefe de estado de uma Monarquia Constitucional, tem, por função principal, garantir o normal funcionamento das instituições da nação, reunindo-se regularmente com o representante de cada uma delas, o que exige uma constante disponibilidade. O marido, D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gota, pai de todos os seus filhos, não se imiscui nos assuntos de Estado, preferindo manter uma presença discreta.

No dia seguinte, logo pela manhã, o Duque da Terceira, presidente do Conselho de Ministros, é a primeira entidade a estar presente no palácio, dirigindo-se, de imediato, para os aposentos da soberana, profusamente iluminados por faustosos candelabros cuja claridade se reflete em dois cristalinos espelhos emoldurados por exuberante talha dourada, estrategicamente colocados nas paredes que ladeiam o dossel real.

A rainha, ainda bastante combalida, segura nos braços a nova infanta e, à sua volta, ternamente inclinados sobre o leito, marcam presença o marido e os filhos D. Pedro e D. Luís, respetivamente com sete e seis anos de idade. Os outros dois príncipes do casal real, D. João e D. Maria Ana, o primeiro com dois anos e a segunda apenas com um, ainda se encontram a dormir junto das respetivas amas. A soberana já havia tido outra filha, a 4 de outubro de 1840, nascida, infelizmente, já sem vida.

Fazendo uma vénia, o Duque da Terceira dirige-se a D. Maria II, declarando, com solenidade:

— Em nome do meu governo, felicito Vossa Majestade pelo nascimento de D. Antónia.

— Muito obrigada, António José! – responde a rainha, esboçando um sorriso. — Tal como meu pai, tenho por si grande estima, desejando que continue a obter o maior sucesso no desempenho do árduo cargo que ocupa.

Após a saída do Duque da Terceira, a soberana recebe a visita do médico que presta serviço na corte, tendo este sido da opinião que, perante o estado debilitado em que esta se encontra, deverá permanecer em absoluto repouso, evitando todas os esforços, inclusivamente o de amamentar a nova princesa, sugerindo que uma ama de leite a substitua nesse dever maternal.

D. Maria II já havia tomado conhecimento que Ana Francisca também dera à luz uma filha, pelo que pede à sua camareira pessoal que vá buscá-la às instalações da criadagem.

Apesar de ainda se encontrar abalada pelo esforço que havia feito na noite anterior, a serviçal sente-se na obrigação de se dirigir rapidamente aos aposentos reais.

A soberana, que nunca trata os criados por tu e exige que os filhos façam o mesmo, diz-lhe:

— Ana Francisca, decidi entregar a nova princesa ao seu cuidado. Peço-lhe que amamente simultaneamente a minha e a sua filha!

— Será para mim uma grande honra amamentar a filha de Vossa Majestade! – responde a serviçal, habituada, desde criança, às formalidades de linguagem existentes na corte.

— Vá buscar a sua filha e traga-a para o quarto da nova princesa. A partir deste momento, todas as outras tarefas que estavam a seu cargo ficam suspensas e dedicar-se-á apenas a ser ama de leite.

Quando a senhora Luísa, chefe dos criados da Casa Real, toma conhecimento que Ana Francisca fora diretamente chamada pela rainha sem o seu conhecimento, ostenta um amargo sorriso. No seu entender, deveria ter sido avisada antecipadamente deste desejo da soberana, cabendo a ela entrar em contacto com a serviçal, uma vez que esta trabalha sob as suas ordens.

Natural de uma pequena vila alentejana, a chefe dos criados entrara ao serviço da Casa Real como ajudante de cozinha quando ainda era muito nova, tendo feito parte da comitiva que acompanhou o príncipe regente D. João e a sua corte na ida para o Brasil. Durante a permanência no Rio de Janeiro, foi ascendendo na hierarquia, passando a desempenhar tarefas cada vez de maior responsabilidade. Quando a corte regressa a Lisboa, é nomeada chefe dos criados, recebendo ordens apenas do mordomo-mor ou, na ausência deste, da própria rainha. Trajada sempre de negro, com o cabelo da mesma cor impecavelmente apanhado com recurso a um diminuto travessão de marfim, a sua austera figura induz o maior respeito entre os subordinados, sempre receosos das reprimendas que esta lhes dirige quando não cumprem com esmero as tarefas que lhes são imputadas.

Fora ela que selecionara Ana Francisca entre as raparigas de um orfanato, quando a família real necessitou de mais uma serviçal. Mais tarde, arrepender-se-ia dessa escolha, não conseguindo esconder uma certa inveja por ela se ter tornado uma moça cuja beleza não passa despercebida aos elementos masculinos da corte, mercê dos seus luzentes olhos claros, faces rosadas e aberto sorriso. Se não ocultasse o seu sedoso cabelo louro sob uma discreta touca branca, a sua formosura seria ainda mais evidente. A concessão que lhe é dada pela rainha de permanecer nas instalações mais nobres do palácio enquanto amamentar a princesa, contribui para corroer ainda mais a azeda relação que mantém com a modesta serviçal que nenhum mal lhe faz, antes pelo contrário, a trata com elevada submissão, vendo-a como uma exigente tia a quem tem de obedecer. Como a rainha controla pessoalmente as amas dos seus filhos, Ana Francisca deixa de estar sob as ordens da chefe dos criados, pelo que esta já não lhe pode impor, como vinha sendo hábito, as tarefas mais dolorosas, nem lhe aplicar castigos imerecidos.

A senhora Luísa coordena apenas os criados contratados, existindo na corte muitos outros cargos – alguns até bem modestos – que são desempenhados por fidalgos e até por elementos da nobreza, não auferindo a maioria deles qualquer remuneração, não só por o seu estatuto social não o permitir, mas principalmente por considerarem ser um privilégio servir diretamente Sua Majestade.

Os constantes mexericos sobre quem é o pai da criança de Ana Francisca preocupam a rainha que se sente, em certa medida, responsável por esta serviçal vinda diretamente de um orfanato, sem nenhum familiar que a proteja. Nomeá-la ama de leite da filha parece à soberana um procedimento acertado que certamente dará alguma dignidade à sua situação de mãe solteira.

Naquela noite, D. Antónia e Maria Isabel partilham o peito de Ana Francisca pela primeira vez. O choro de ambas para de imediato. Discretamente, D. Maria II observa a ama de leite a dar carinhosamente de mamar à sua filha.

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© Jorge Francisco Martins de Freitas
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