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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA

Romance Histórico
Portugal, 1845-1913


autor
Jorge Francisco Martins de Freitas

Episódio 2

O dia amanhece sereno, banhado pelos primeiros raios de sol. O Palácio de Belém fervilha com enorme azáfama: criados percorrem apressadamente as diversas salas, transportando consigo todos os utensílios necessários ao arranjo das mesas destinadas ao banquete que se realiza nesse dia.

Na capela do palácio, exibindo junto ao altar uma vistosa bandeira com as armas da Sereníssima Casa de Bragança, o Cardeal-Patriarca está prestes a terminar a cerimónia de batismo de D. Fernando, o novo filho de D. Maria II, nascido dois dias antes, às 3 da manhã.

Vestido a rigor, o jovem infante D. Luís, ostentando o título nobiliárquico de Duque do Porto, na sua qualidade de segundo filho do Chefe da Casa Real, está presente na cerimónia como padrinho do seu mais recente irmão.

A madrinha do novo infante é a rainha dos belgas, representada pela infanta D. Isabel, quarta filha de D. João VI e D. Carlota Joaquina.

Para além da família real mais chegada, a cerimónia conta, entre outros nobres, com a presença do 1.º Duque de Palmela, Pedro de Sousa Holstein, líder destacado dos cartistas, fação mais conservadora do liberalismo português, que desempenha, há cerca de dois meses, o cargo de presidente do Conselho de Ministros. Este político faz-se acompanhar de sua esposa, D. Eugénia Francisca, elegantemente trajada com uma armada saia comprida azul-escura e um vistoso corpete de veludo da mesma cor, colmatado com mangas largas e tufadas.

Nas traseiras do palácio, D. Antónia e Maria Isabel brincam uma com a outra, sob a atenta vigilância de Ana Francisca.

A princesa e a plebeia haviam feito, há poucos dias, dezassete meses de idade. Desde muito cedo que, entre ambas, surgira um profundo relacionamento idêntico ao que se estabelece normalmente entre irmãs gémeas.

Uma das primeiras palavras que a infanta pronunciou foi Isa, nome pelo qual a mãe de Maria Isabel se dirigia à filha. Respeitosamente, Ana Francisca sempre tratara a filha da rainha por D. Antónia, mas a princesa habituou-se, com Isa, a chamar à ama de leite mamã, apesar de todos os dias ser levada à presença da verdadeira mãe que não dispensava passar algum tempo com ela e com os restantes filhos, sempre preocupada com o bem-estar e a educação dos príncipes.

Terminado o batismo, a família real e os convidados conversam animadamente, enquanto aguardam, na Sala Dourada, que o banquete comece a ser servido.

A um canto, D. Fernando II fala com D. Pedro, seu filho primogénito, prestes a fazer nove anos. Desde muito novo, o futuro monarca demonstrara ser possuidor de uma inteligência e vontade de aprender muito acima da média, mantendo com interlocutores mais velhos uma conversação que, em muito, ultrapassava o que seria de esperar da sua ainda tenra idade. O seu progenitor, possuidor de uma vasta cultura, dedicava-se às artes, tendo, dez anos atrás, por altura da fundação da Academia de Belas-Artes de Lisboa, se declarado, em conjunto com a rainha, protetor dessa instituição. Fluente em diversas línguas, o rei consorte era igualmente grande admirador de romances históricos, tendo apreciado a leitura de O Bobo e de Eurico, o Presbítero, obras de Alexandre Herculano recentemente publicadas, pelo que decide nomear este escritor tutor do filho.

Entretanto, o Duque de Palmela, que já visitara por três vezes a soberana no Palácio de Belém a fim de tratar de assuntos de Estado, mostra à esposa alguns dos recantos mais interessantes do jardim. A dado momento, cruzam-se com Ana Francisca e as duas crianças. A diferença de vestuário exibida por cada uma delas não deixa qualquer dúvida a D. Eugénia: a mais bem-trajada é, certamente, uma princesa.

— Esta menina é Sua Alteza Real, D. Antónia, filha de Sua Majestade – informa o duque, executando simultaneamente uma ligeira vénia na direção da infanta.

— E quem é a outra criança? – pergunta D. Eugénia.

D. Antónia, esboçando um sorriso, antecipa-se à resposta do duque, afirmando, com candura:

— É a minha irmã!

Ana Francisca sente-se na obrigação de elucidar a senhora duquesa sobre a verdadeira identidade da outra menina:

— Informo vossa senhoria que ela é a minha filha Maria Isabel. Como estou a amamentar simultaneamente as duas, D. Antónia vê-a como uma irmã…

— Ah, sim, compreende-se… – balbucia a duquesa, observando com maior atenção as duas crianças. Considera que ambas são detentoras de grande beleza, mas apenas se pronuncia sobre a princesa:

— Sua Alteza é muito bela. Deus lhe dê as maiores felicidades!

Em nome de D. Antónia, Ana Francisca agradece:

— Muito obrigada! Também a considero muito bonita!

Os Duques de Palmela regressam à Sala Dourada, onde o banquete começara a ser servido.

As mesas, dispostas num vasto quadrado aberto de um dos lados, apresentam-se cobertas por finas toalhas de linho bordado. Diversos candelabros complementam a iluminação emanada pelo esplendoroso lustre do teto, fazendo incidir raios luminosos nos copos de cristal colocados à frente de cada um dos conjuntos individuais de pratos de fina porcelana portuguesa.

Os criados começam por servir as entradas, constituídas, entre outras iguarias, por majestosos lagostins com maionese de limão, deliciosos enrolados de queijo de cabra com castanhas caramelizadas e apetitosos folhados de faisão.

Após a degustação de um delicado consomê de cogumelos, é servida, a cada um dos presentes, meia posta de um corpulento espadarte pescado junto ao Cabo Espichel, temperada com azeite das planícies alentejanas e salpicada com sumo de limão. Batatas e feijão verde – ambos cozinhados em lume brando – acompanham este prato. Um fresco e delicioso vinho branco da Bairrada humedece o palato dos convidados, tornando ainda mais sublime este manjar.

Seguidamente, é distribuído o prato principal: um saboroso javali caçado, na madrugada do dia anterior, na Tapada de Mafra, condimentado com diversas especiarias e regado com abundante vinho tinto da Península de Setúbal.

No final do repasto, são trazidos diversos licores e vinho do Porto para acompanhar as inúmeras sobremesas, todas elas deliciosas, mas as que mais entusiasmam a família real e seus convidados são os apetitosos doces conventuais fabricados, desde a década anterior, nas instalações anexas a uma refinação de cana-de-açúcar situada nas proximidades do palácio. Como consequência da Revolução Liberal de 1820, catorze anos mais tarde haviam sido encerrados todos os conventos e mosteiros de Portugal, incluindo o dos Jerónimos. Alguém deste templo havia cedido àquela empresa de refinação a receita secreta do fabrico destes doces, até hoje conhecidos por Pastéis de Belém.

Ao fim da tarde, após ter terminado o banquete, o cardeal e o reduzido número de nobres que foram convidados para este evento abandonam o palácio e a família real retira-se para os seus aposentos.

Ana Francisca coloca a filha e a princesa a dormir e dirige-se aos quartos da criadagem para ir buscar algumas peças de roupa que ali deixara.

No caminho, cruza-se com Alfredo, o moço da estrebaria, que há muito tentava se abeirar dela.

— Gosto bastante de ti. Casa comigo e serei um pai para a tua filha!

Ana Francisca, apesar de o achar detentor de uma boa presença física, nunca se mostrara recetiva aos seus avanços amorosos, preferindo manter com ele e com todos os outros criados uma relativa distância, pelo que o afasta do caminho com um movimento brusco do braço.

Despeitado, Alfredo retorque:

— Deves estar à espera de que o pai da tua filha se case contigo! Ele já deve ter outra mulher, mas, mesmo que seja solteiro, nenhum nobre te quererá como esposa!

Incomodada com o atrevimento do rapaz, a serviçal não lhe responde, entrando, de rompante, no seu antigo quarto, não conseguindo evitar que lágrimas escorram pelo rosto.

A senhora Luísa, que acabara de assistir a esta cena, dirige-se a Alfredo:

— Ela sente-se muito importante por amamentar a D. Antónia, mas não passa de uma simples criada. Se insistires, ela acabará por te aceitar.

Alfredo interpreta estas palavras como uma ajuda aos seus intentos, mas, na verdade, desde que Ana Francisca deixara de estar sob as ordens da chefe dos criados, esta tudo fizera para denegrir a imagem da serviçal, inclusivamente junto da rainha, referindo comportamentos que não correspondiam à verdade:

— Informo Vossa Majestade que Ana Francisca já foi vista a dar uma palmada em Sua Alteza Real, a infanta D. Antónia!

Habituada aos constantes mexericos da corte, a soberana não acreditou na veracidade desta conduta por parte da ama de sua filha, pois esta sempre demonstrara ser muito carinhosa e cuidar de forma exemplar a princesa.

Após enxugar as lágrimas, Ana Francisca dirige-se novamente para os aposentos reais, onde as duas crianças continuam a dormir tranquilamente como dois anjinhos, a princesa num leito dourado e a sua filha num cesto de verga.

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© Jorge Francisco Martins de Freitas
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